sábado, 21 de abril de 2012

Entrevista de Walter Salles sobre On The Road e Kristen para o Estadão!


Kristen é mencionada como a menina de 16 anos perfeita para o personagem.


A expectativa acabou: Na Estrada, de Walter Salles, disputa mesmo a Palma de Ouro, prêmio principal de Cannes, o mais badalado dos grandes festivais de cinema. O título brasileiro é tradução literal de On the Road, o romance beat de Jack Kerouac, que influenciou o comportamento de várias gerações de jovens, antecipou o espírito hippie e a revolta dos anos 1960 e fez a cabeça de grande parte dos escritores da segunda metade do século 20 – e não apenas nos Estados Unidos.

Coube portanto a Walter Sales levar para a tela a viagem tão norte-americana quanto universal de Na Estrada, com seus três jovens personagens: o escritor Sal Paradise (Sam Riley), cuja vida entra em ebulição pela chegada de Dean Moriarty (Garrett Hedlund), um jovem libertário vindo do Oeste com sua namorada de 16 anos Marylou (Kristen Stewart). O filme inclui em seu elenco nomes como Viggo Mortensen, Steve Buscemi e a brasileira Alice Braga e estreia no Brasil em 15 de junho.

Várias vezes os estúdios já haviam desejado levar esse romance tão importante às telas. Dez tentativas, para citar o número exato, e nunca tiveram êxito. Chega agora pelas mãos desse brasileiro, que gosta tanto de filmes de estrada que fez vários desse gênero, como Terra Estrangeira, Central do Brasil e Diários de Motocicleta. Agora conduz, como diretor, o protótipo do gênero, num projeto cheio de desafios como conta na entrevista abaixo, exclusiva ao Caderno 2.

Entrevista

Vamos começar pelo começo: o romance. Dizem os críticos que foi uma revolução na cultura norte-americana, do mesmo porte de O Apanhador do Campo de Centeio, ou ainda maior. Está de acordo? Por quê?

Sim, foi um choque. On the Road foi um divisor de águas, pela liberdade radical que os seus personagens anunciavam, pela narrativa ritmada pelo jazz e pelo bebop, pelas drogas usadas como forma de ampliar o conhecimento do mundo, pela maneira como o sexo era vivido e descrito à flor da pele. On the Road lançou as raízes de uma revolução comportamental, o inicio da contracultura americana, e marcou a chegada de uma geração de novos escritores brilhantes. Mas o livro esteve longe de ser uma unanimidade. Truman Capote, por exemplo, dizia que aquilo não era literatura, e sim datilografia. Gore Vidal foi pelo mesmo caminho, assim como John Updike. A mesma divisão aconteceu com a crítica.

Como foi o desafio de filmar essa “instituição americana”, que tinha sido cogitada para ir às telas desde seu lançamento, em 1957?

É sintomático que mais de dez projetos tenham sido desenvolvidos e engavetados durante todos esses anos, e que nenhuma produtora norte-americana tenha se aventurado nessa tarefa. O Beat Museum de São Francisco está fazendo um seminário no mês que vem sobre o tema “On the Road X Hollywood”, para entender as razões desse desencontro. O filme acabou sendo possível graças à produtora independente francesa MK2, que o financiou com a ajuda do Film Four inglês e pequenos distribuidores independentes europeus que pre-compraram o filme. A Zoetrope é a co-produtora do filme, e foi dela que partiu o convite logo depois da exibição de Diarios de Motocicleta, em 2004, no Festival de Sundance.

Você se sentiu, como brasileiro, à vontade para lidar com essa ficção, no fundo tão americana? Ou acha que encontrou pontos universais para a transposição? Nesse caso, quais seriam?

Quando o convite aconteceu, fiquei em dúvida se devia aceitá-lo ou não. Fui profundamente marcado por On the Road, que eu li pela primeira vez nos anos 70. O livro era em tudo diferente daquilo que eu tinha lido até então, diferente do mundo em que eu vivia. Nada mais seria como antes. Mas isso também não era um passaporte para a adaptação, e por isso propus para a Zoetrope fazer um documentário que partisse em busca de On the Road e do legado de Kerouac. Esse processo foi fascinante, o de fazer um documentário em busca de um filme possível, e filmamos intermitentemente nos últimos seis anos. Um dos nossos entrevistados foi o poeta e ativista político Amiri Baraka. Baraka nos lembrou que On the Road era, antes de mais nada, a historia de jovens filhos de imigrantes nos Estados Unidos, que vinham do Quebec (Kerouac), do Leste Europeu (Ginsberg), da Irlanda e Alemanha (Neal Cassady). Esses jovens não tinham lugar na cultura conservadora norte-americana do pós-guerra, e entraram em colisão com ela. A compreensão de que as obras de Kerouac e de Ginsberg estão “entre culturas” nos franqueou, de alguma maneira, a possibilidade de olhar o país de fora para dentro.

Certamente algo o atrai nos filmes de estrada como atestam Terra Estrangeira, Diários de Motocicleta e também, é claro, Central do Brasil. São filmes de deslocamentos, tanto existenciais como físicos. Essa familiaridade (e preferência) o preparou para On the Road e de que maneira?

A questão da busca de identidade talvez seja o traço comum à maioria dos filmes que eu fiz, e os filmes de estrada servem essa temática. Por outro lado, os filmes de estrada são aqueles em que a improvisação se faz necessária a todo momento. Se neva, muda-se o roteiro para incorporar a neve. Se fazemos um encontro como o do jovem guia que nos mostra Cuzco e nos fala dos Incas e dos incapazes (os espanhóis), em Diarios de Motocicleta, procuramos incorporá-lo na narrativa. O filme de estrada é o ponto de encontro entre o cinema documental, de onde venho, e a ficção.

Outra coisa foi o documentário prévio que você fez, e do qual vimos um trecho, o Searching for On the Road. De que maneira ele o preparou para enfrentar o desafio da ficção de Kerouac?

Eu não teria feito o filme sem passar pelo documentário. Ele nos permitiu encontrar os personagens do livro que estão vivos, nos permitiu encontrar vários poetas da geração de Kerouac que formaram o movimento beat, além de artistas que foram influenciados pela obra do escritor. A cada uma dessas pessoas, nós perguntamos qual era o filme que eles gostariam de ver baseado em On the Road. Essas respostas foram nos norteando, abrindo pistas, possibilitando entender o quanto esta historia se aproximava de Rashomon. Para cada fato, havia uma serie versões possíveis para interpretá-lo. Foi um processo fascinante, que nos alimentou o tempo inteiro.

Como se deu a escolha do elenco? E do pessoal técnico?

A maior parte do elenco foi convidada no início do processo, há cinco anos. Kirsten Dunst foi a primeira pessoa com quem eu estive para falar de Camille. Garrett Hedlund surgiu num teste de elenco, vindo diretamente da fazenda onde ele morava em Minnesota, perto de Fargo, a cidade onde os irmãos Coen filmaram. Ele trouxe um texto sobre a viagem que ele havia realizado. Era tão marcante quanto o seu teste. Sam Riley também fez um ótimo teste depois de eu ter visto Control , e me encantado por sua performance como Ian Curtis. Kristen Stewart foi convidada quase tão cedo quanto Kirsten Dunst, graças a Gustavo Santaolalla e Alejandro Gonzalez Iñarritu, que haviam visto o primeiro corte do filme de Sean Penn, Na Natureza Selvagem. Eles disseram: para Marylou pare de procurar, pois acabamos de ver uma menina de 16 anos perfeita para o papel. Eu me lembro que tive que anotar, na época, o nome de Kristen.

Quando o filme virou realidade, terminamos o processo de casting e foi aí que atores como Viggo Mortensen,Amy Adams, Steve Buscemi e Alice Braga entraram no filme. Viggo chegou com as roupas do personagem, a máquina de escrever, o revolver idêntico àquele utilizado por Burroughs. Ele também sugeriu uma serie de cenas adicionais, que improvisamos em Nova Orleans. Amy Adams é uma atriz excepcional, da mesma família de Viggo. E Alice entrou com coração e alma no filme, deu vida a uma personagem luminosa, exatamente como eu havia imaginado.

A equipe técnica é em grande parte a mesma de Diarios de Motocicleta. O roteiro de Jose Rivera, luz e câmera de Eric Gautier, direção de arte de Carlos Conti e trilha sonora de Gustavo Santaolalla.

Como você resolveu o problema de colocar na tela toda a pulsação que se sente ao se ler Kerouac, aquele ritmo intenso, frenético mesmo?

É um filme que alterna momentos de aceleração com momentos em que o tempo parece suspenso, para acentuar a dor dos personagens. Era imprescindível fazer jus à espontaneidade, à improvisação que caracterizam o texto. O escritor Roberto Muggiati fala que a máquina de escrever era, para Kerouac, como a extensão do próprio corpo. E que ele entregava-se aos seus longos períodos como um saxofonista improvisando. Essa intensidade, era necessária reencontrá-la no filme.

O livro é sintomático daquela época, anos 1950, imediato pós-guerra, juventude perdida, a era beatinik, pré-hippie, pré- movimentos políticos de 1968. Como você acha que esse material se liga à nossa era atual, que parece mais de desencanto morno do que de revolta?

On the Road prega a importância de se viver à flor da pele, e não por procuração. O oposto da tele-realidade. Ainda faz sentido se mover, ver com seus próprios olhos, em um momento em que o tempo e a geografia foram implodidos, como Jia Zhang-Ke mostra esplendidamente em “O Mundo”? Uma possível resposta: nos últimos anos, fui diversas vezes a Patagônia para filmar ou fazer locações. Experimentei o frio, a aridez, me senti infinitamente pequeno no meio daquela imensidão. Tudo isso cria uma relação inesquecível com aquele meio-ambiente, o oposto do que teria acontecido se eu tivesse tido a experiência de olhar aquela geografia pela tela da televisão. Nada substitui a experiência.

Como foi a escolha de locações, que me parece devem ser muito importantes para recriar a ambiência daqueles anos e daquele tipo de mentalidade?

Bem mais difícil de que para Diários de Motocicleta, porque a América Latina ainda é, em muitos pontos, uma ultima fronteira. Para fazer On the Road, tivemos que rodar três ou quatro vezes mais, ir ainda mais longe. No total, 100.000 kms para tentar encontrar uma geografia virgem, que pudesse transmitir a ideia de que aqueles jovens estavam em busca da ultima fronteira norte-americana. Para isso, foi preciso desviar constantemente dos centros urbanos que hoje se parecem, todos, banalizados pelos Wal-Marts e McDonalds.

Os beats plantaram as sementes de uma revolução comportamental que, de certa forma, criou o nosso mundo de hoje. Será que a sua mensagem não se encontra atenuada neste nosso mundo já meio envelhecido e que não se espanta diante de nada? Ou ainda eles mantêm seu poder de corrosão?

On the Road iniciou uma revolução comportamental cuja reverberação pode ser sentida até hoje. Eduardo Bueno lembra com toda razão que não existiria Bob Dylan sem On the Road, não existiria Leonard Cohen ou Neal Young sem os poetas beat. Vivemos recentemente a mesma cultura do medo dos anos do macarthismo. Será que estamos tão distantes dessa época? Em alguns sentidos, sim, em outros não. Foi essa percepção que nos fez procurar realizar um filme que não estivesse situado em um tempo distante, e que fosse contemporâneo.

Em termos de distribuição internacional: à parte o Festival de Cannes, o filme já tem data para estreia mundial? E no Brasil?

O filme estreia na França e em diversos outros países europeus no dia 23 de maio. Outras estreias acontecerão até final de setembro, quando o filme chega à Inglaterra. No Brasil, a estreia acontecerá no dia 15 de junho.

Acha que ele será entendido de maneira diferente nos EUA, na Europa e no Brasil?

Sim, da mesma forma com que Diários de Motocicleta foi entendido de forma diferente dependendo da latitude. A leitura de Diários na Argentina, em Cuba ou nos Estados Unidos não poderia ser a mesma. Identicamente, deve-se imaginar que a leitura de On the Road deve variar bastante da Europa para os Estados Unidos, ou para América Latina. É importante notar, alias, que países como França e Itália abraçaram Kerouac, Ginsberg e os poetas beat muito cedo, como eles também fizeram com os músicos de jazz dos anos 40, no momento em que esses mesmos poetas ainda não eram devidamente reconhecidos no seu país de origem. Mais especificamente com relação a Kerouac, o escritor Barry Gifford, autor de uma excelente biografia oral chamada “O livro de Jack”, nos lembra que no final dos anos 70 e inicio dos anos 80 era difícil encontrar livros de Kerouac nas livrarias norte-americanas. Na Europa, acontecia o contrário.

Como autor, você teve total liberdade de fazer o filme como melhor lhe pareceu ou houve alguma injunção por parte da produção?

O filme foi financiado de forma independente pela produtora francesa Mk2, pelo Film Four (a mesma companhia independente inglesa que já havia financiado Diarios de Motocicleta) e pela pré-compra possibilitada por diversos pequenos distribuidores europeus. Da mesma forma como aconteceu com Diários, tive o corte final do filme. As dificuldades maiores estiveram ligadas ao orçamento disponível para fazer um filme tão complexo quanto esse, mas muitas vezes essas limitações funcionaram a favor do filme e não contra.

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