Kristen é
mencionada como a menina de 16 anos perfeita para o personagem.
A
expectativa acabou: Na Estrada, de Walter Salles, disputa mesmo a Palma de Ouro,
prêmio principal de Cannes, o mais badalado dos grandes festivais de cinema. O
título brasileiro é tradução literal de On the Road, o romance beat de Jack
Kerouac, que influenciou o comportamento de várias gerações de jovens, antecipou
o espírito hippie e a revolta dos anos 1960 e fez a cabeça de grande parte dos
escritores da segunda metade do século 20 – e não apenas nos Estados
Unidos.
Coube portanto a Walter Sales levar para a tela a viagem tão
norte-americana quanto universal de Na Estrada, com seus três jovens
personagens: o escritor Sal Paradise (Sam Riley), cuja vida entra em ebulição
pela chegada de Dean Moriarty (Garrett Hedlund), um jovem libertário vindo do
Oeste com sua namorada de 16 anos Marylou (Kristen Stewart). O filme inclui em
seu elenco nomes como Viggo Mortensen, Steve Buscemi e a brasileira Alice Braga
e estreia no Brasil em 15 de junho.
Várias vezes os estúdios já haviam
desejado levar esse romance tão importante às telas. Dez tentativas, para citar
o número exato, e nunca tiveram êxito. Chega agora pelas mãos desse brasileiro,
que gosta tanto de filmes de estrada que fez vários desse gênero, como Terra
Estrangeira, Central do Brasil e Diários de Motocicleta. Agora conduz, como
diretor, o protótipo do gênero, num projeto cheio de desafios como conta na
entrevista abaixo, exclusiva ao Caderno 2.
Entrevista
Vamos começar pelo começo: o romance. Dizem os
críticos que foi uma revolução na cultura norte-americana, do mesmo porte de O
Apanhador do Campo de Centeio, ou ainda maior. Está de acordo? Por
quê?
Sim, foi um choque. On the Road foi um divisor de águas, pela
liberdade radical que os seus personagens anunciavam, pela narrativa ritmada
pelo jazz e pelo bebop, pelas drogas usadas como forma de ampliar o conhecimento
do mundo, pela maneira como o sexo era vivido e descrito à flor da pele. On the
Road lançou as raízes de uma revolução comportamental, o inicio da contracultura
americana, e marcou a chegada de uma geração de novos escritores brilhantes. Mas
o livro esteve longe de ser uma unanimidade. Truman Capote, por exemplo, dizia
que aquilo não era literatura, e sim datilografia. Gore Vidal foi pelo mesmo
caminho, assim como John Updike. A mesma divisão aconteceu com a
crítica.
Como foi o desafio de filmar essa “instituição americana”, que
tinha sido cogitada para ir às telas desde seu lançamento, em 1957?
É
sintomático que mais de dez projetos tenham sido desenvolvidos e engavetados
durante todos esses anos, e que nenhuma produtora norte-americana tenha se
aventurado nessa tarefa. O Beat Museum de São Francisco está fazendo um
seminário no mês que vem sobre o tema “On the Road X Hollywood”, para entender
as razões desse desencontro. O filme acabou sendo possível graças à produtora
independente francesa MK2, que o financiou com a ajuda do Film Four inglês e
pequenos distribuidores independentes europeus que pre-compraram o filme. A
Zoetrope é a co-produtora do filme, e foi dela que partiu o convite logo depois
da exibição de Diarios de Motocicleta, em 2004, no Festival de
Sundance.
Você se sentiu, como brasileiro, à vontade para lidar com essa
ficção, no fundo tão americana? Ou acha que encontrou pontos universais para a
transposição? Nesse caso, quais seriam?
Quando o convite aconteceu,
fiquei em dúvida se devia aceitá-lo ou não. Fui profundamente marcado por On the
Road, que eu li pela primeira vez nos anos 70. O livro era em tudo diferente
daquilo que eu tinha lido até então, diferente do mundo em que eu vivia. Nada
mais seria como antes. Mas isso também não era um passaporte para a adaptação, e
por isso propus para a Zoetrope fazer um documentário que partisse em busca de
On the Road e do legado de Kerouac. Esse processo foi fascinante, o de fazer um
documentário em busca de um filme possível, e filmamos intermitentemente nos
últimos seis anos. Um dos nossos entrevistados foi o poeta e ativista político
Amiri Baraka. Baraka nos lembrou que On the Road era, antes de mais nada, a
historia de jovens filhos de imigrantes nos Estados Unidos, que vinham do Quebec
(Kerouac), do Leste Europeu (Ginsberg), da Irlanda e Alemanha (Neal Cassady).
Esses jovens não tinham lugar na cultura conservadora norte-americana do
pós-guerra, e entraram em colisão com ela. A compreensão de que as obras de
Kerouac e de Ginsberg estão “entre culturas” nos franqueou, de alguma maneira, a
possibilidade de olhar o país de fora para dentro.
Certamente algo o
atrai nos filmes de estrada como atestam Terra Estrangeira, Diários de
Motocicleta e também, é claro, Central do Brasil. São filmes de deslocamentos,
tanto existenciais como físicos. Essa familiaridade (e preferência) o preparou
para On the Road e de que maneira?
A questão da busca de identidade
talvez seja o traço comum à maioria dos filmes que eu fiz, e os filmes de
estrada servem essa temática. Por outro lado, os filmes de estrada são aqueles
em que a improvisação se faz necessária a todo momento. Se neva, muda-se o
roteiro para incorporar a neve. Se fazemos um encontro como o do jovem guia que
nos mostra Cuzco e nos fala dos Incas e dos incapazes (os espanhóis), em Diarios
de Motocicleta, procuramos incorporá-lo na narrativa. O filme de estrada é o
ponto de encontro entre o cinema documental, de onde venho, e a
ficção.
Outra coisa foi o documentário prévio que você fez, e do qual
vimos um trecho, o Searching for On the Road. De que maneira ele o preparou para
enfrentar o desafio da ficção de Kerouac?
Eu não teria feito o filme sem
passar pelo documentário. Ele nos permitiu encontrar os personagens do livro que
estão vivos, nos permitiu encontrar vários poetas da geração de Kerouac que
formaram o movimento beat, além de artistas que foram influenciados pela obra do
escritor. A cada uma dessas pessoas, nós perguntamos qual era o filme que eles
gostariam de ver baseado em On the Road. Essas respostas foram nos norteando,
abrindo pistas, possibilitando entender o quanto esta historia se aproximava de
Rashomon. Para cada fato, havia uma serie versões possíveis para interpretá-lo.
Foi um processo fascinante, que nos alimentou o tempo inteiro.
Como se
deu a escolha do elenco? E do pessoal técnico?
A maior parte do elenco
foi convidada no início do processo, há cinco anos. Kirsten Dunst foi a primeira
pessoa com quem eu estive para falar de Camille. Garrett Hedlund surgiu num
teste de elenco, vindo diretamente da fazenda onde ele morava em Minnesota,
perto de Fargo, a cidade onde os irmãos Coen filmaram. Ele trouxe um texto sobre
a viagem que ele havia realizado. Era tão marcante quanto o seu teste. Sam Riley
também fez um ótimo teste depois de eu ter visto Control , e me encantado por
sua performance como Ian Curtis. Kristen Stewart foi convidada quase tão cedo
quanto Kirsten Dunst, graças a Gustavo Santaolalla e Alejandro Gonzalez
Iñarritu, que haviam visto o primeiro corte do filme de Sean Penn, Na Natureza
Selvagem. Eles disseram: para Marylou pare de procurar, pois acabamos de
ver uma menina de 16 anos perfeita para o papel. Eu me lembro que tive que
anotar, na época, o nome de Kristen.
Quando o filme virou
realidade, terminamos o processo de casting e foi aí que atores como Viggo
Mortensen,Amy Adams, Steve Buscemi e Alice Braga entraram no filme. Viggo chegou
com as roupas do personagem, a máquina de escrever, o revolver idêntico àquele
utilizado por Burroughs. Ele também sugeriu uma serie de cenas adicionais, que
improvisamos em Nova Orleans. Amy Adams é uma atriz excepcional, da mesma
família de Viggo. E Alice entrou com coração e alma no filme, deu vida a uma
personagem luminosa, exatamente como eu havia imaginado.
A equipe técnica
é em grande parte a mesma de Diarios de Motocicleta. O roteiro de Jose Rivera,
luz e câmera de Eric Gautier, direção de arte de Carlos Conti e trilha sonora de
Gustavo Santaolalla.
Como você resolveu o problema de colocar na tela
toda a pulsação que se sente ao se ler Kerouac, aquele ritmo intenso, frenético
mesmo?
É um filme que alterna momentos de aceleração com momentos em que
o tempo parece suspenso, para acentuar a dor dos personagens. Era imprescindível
fazer jus à espontaneidade, à improvisação que caracterizam o texto. O escritor
Roberto Muggiati fala que a máquina de escrever era, para Kerouac, como a
extensão do próprio corpo. E que ele entregava-se aos seus longos períodos como
um saxofonista improvisando. Essa intensidade, era necessária reencontrá-la no
filme.
O livro é sintomático daquela época, anos 1950, imediato
pós-guerra, juventude perdida, a era beatinik, pré-hippie, pré- movimentos
políticos de 1968. Como você acha que esse material se liga à nossa era atual,
que parece mais de desencanto morno do que de revolta?
On the Road prega
a importância de se viver à flor da pele, e não por procuração. O oposto da
tele-realidade. Ainda faz sentido se mover, ver com seus próprios olhos, em um
momento em que o tempo e a geografia foram implodidos, como Jia Zhang-Ke mostra
esplendidamente em “O Mundo”? Uma possível resposta: nos últimos anos, fui
diversas vezes a Patagônia para filmar ou fazer locações. Experimentei o frio, a
aridez, me senti infinitamente pequeno no meio daquela imensidão. Tudo isso cria
uma relação inesquecível com aquele meio-ambiente, o oposto do que teria
acontecido se eu tivesse tido a experiência de olhar aquela geografia pela tela
da televisão. Nada substitui a experiência.
Como foi a escolha de
locações, que me parece devem ser muito importantes para recriar a ambiência
daqueles anos e daquele tipo de mentalidade?
Bem mais difícil de que para
Diários de Motocicleta, porque a América Latina ainda é, em muitos pontos, uma
ultima fronteira. Para fazer On the Road, tivemos que rodar três ou quatro vezes
mais, ir ainda mais longe. No total, 100.000 kms para tentar encontrar uma
geografia virgem, que pudesse transmitir a ideia de que aqueles jovens estavam
em busca da ultima fronteira norte-americana. Para isso, foi preciso desviar
constantemente dos centros urbanos que hoje se parecem, todos, banalizados pelos
Wal-Marts e McDonalds.
Os beats plantaram as sementes de uma revolução
comportamental que, de certa forma, criou o nosso mundo de hoje. Será que a sua
mensagem não se encontra atenuada neste nosso mundo já meio envelhecido e que
não se espanta diante de nada? Ou ainda eles mantêm seu poder de
corrosão?
On the Road iniciou uma revolução comportamental cuja
reverberação pode ser sentida até hoje. Eduardo Bueno lembra com toda razão que
não existiria Bob Dylan sem On the Road, não existiria Leonard Cohen ou Neal
Young sem os poetas beat. Vivemos recentemente a mesma cultura do medo dos anos
do macarthismo. Será que estamos tão distantes dessa época? Em alguns sentidos,
sim, em outros não. Foi essa percepção que nos fez procurar realizar um filme
que não estivesse situado em um tempo distante, e que fosse
contemporâneo.
Em termos de distribuição internacional: à parte o
Festival de Cannes, o filme já tem data para estreia mundial? E no
Brasil?
O filme estreia na França e em diversos outros países europeus no
dia 23 de maio. Outras estreias acontecerão até final de setembro, quando o
filme chega à Inglaterra. No Brasil, a estreia acontecerá no dia 15 de
junho.
Acha que ele será entendido de maneira diferente nos EUA, na
Europa e no Brasil?
Sim, da mesma forma com que Diários de Motocicleta
foi entendido de forma diferente dependendo da latitude. A leitura de Diários na
Argentina, em Cuba ou nos Estados Unidos não poderia ser a mesma. Identicamente,
deve-se imaginar que a leitura de On the Road deve variar bastante da Europa
para os Estados Unidos, ou para América Latina. É importante notar, alias, que
países como França e Itália abraçaram Kerouac, Ginsberg e os poetas beat muito
cedo, como eles também fizeram com os músicos de jazz dos anos 40, no momento em
que esses mesmos poetas ainda não eram devidamente reconhecidos no seu país de
origem. Mais especificamente com relação a Kerouac, o escritor Barry Gifford,
autor de uma excelente biografia oral chamada “O livro de Jack”, nos lembra que
no final dos anos 70 e inicio dos anos 80 era difícil encontrar livros de
Kerouac nas livrarias norte-americanas. Na Europa, acontecia o
contrário.
Como autor, você teve total liberdade de fazer o filme como
melhor lhe pareceu ou houve alguma injunção por parte da produção?
O
filme foi financiado de forma independente pela produtora francesa Mk2, pelo
Film Four (a mesma companhia independente inglesa que já havia financiado
Diarios de Motocicleta) e pela pré-compra possibilitada por diversos pequenos
distribuidores europeus. Da mesma forma como aconteceu com Diários, tive o corte
final do filme. As dificuldades maiores estiveram ligadas ao orçamento
disponível para fazer um filme tão complexo quanto esse, mas muitas vezes essas
limitações funcionaram a favor do filme e não contra.
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