“Na Estrada”: a viagem mítica que formou a juventude.
Walter Salles está acostumado com filmes de viagem, mas nunca tinha se aventurado tão longe do seu Brasil natal. | RICHARD DUMAS/VU POUR “LE MONDE”
“Na Estrada”, o filme, existe há décadas. Não somente como projetos de adaptação abortados, que ocupam as gavetas de Francis Ford Coppola, Gus Van Sant ou Joel Schumacher, mas no imaginário de centenas de milhares de leitores do livro de Jack Kerouac, publicado em 1956.
As tribulações transcontinentais de Sal Paradise e Dean Moriarty são a matriz de aventuras americanas vividas ou sonhadas por gerações de jovens que, um dia, quiseram partir longe. O princípio é sempre o mesmo: atravessar os Estados Unidos seguindo as fitas de asfalto, na esperança de descobrir o mundo, os outros, si mesmo.
Este sonho gerou um amontoamento de imagens, músicas, palavras, que formou uma camada tão espessa que nem sempre é possível perceber o que existia à base. “Na Estrada”, o filme de Walter Salles apresentado em competição em Cannes no dia em que entra em cartaz, nesta quarta-feira 23 de maio, tira a pátina para desvendar novamente as cores vivas, as emoções agudas, e a descoberta estonteante de uma forma de viver que implodiu – pelo menos, por um tempo – a American way of life.
A empreitada era arriscada. Não é coincidência se já se passou mais de meio século entre a publicação do romance e o início da construção do filme. Para fazê-lo, Walter Salles observou uma disciplina monacal. Precisou saber tudo do livro, que se tornou texto sagrado, do homem que o escreveu, das pessoas que serviram de modelo para os personagens, mobilizar os meios permitindo dar uma realidade material a paisagens desaparecidas. Depois, precisou apagar o conhecimento acumulado, a abundância de meios, para apenas mostrar a vida incerta, violenta e sensual de Sal Paradise e de seus amigos.
“Na Estrada” abre com uma viagem na traseira de uma picape. Andarilhos (hobos, em inglês americano), que acabaram de atravessar os anos da Depressão e da guerra dão lugar a um rapaz que não se parece com eles. Sal Paradise (Sam Riley) é o álter ego de Jack Kerouac, filho de operário originário do Québec nascido em 1922 que, de 1947 a 1950, atravessou várias vezes os Estados Unidos acompanhado de Neal Cassady (Dean Moriarty no romance).
O roteiro de José Rivera segue de relativamente perto o itinerário que o romance fixou para a posteridade. Mas também leva em consideração a realidade das viagens de Kerouac e Cassady. Da mesma maneira, a oscilação entre história e ficção aparece no elenco. Sam Riley, ator britânico (com sotaque americano impecável) não se parece em nada com Kerouac, enquanto Garrett Hedlund, que incarna Moriarty, lembra Neal Cassady.
De qualquer forma, “Na Estrada”, o livro, é também a história de sua própria criação, e a posição do artista – ator e observador, contemplativo, que se vê mergulhado de repente no coração da vida – está perfeitamente ocupada por Riley, com seu olhar sonhador e sua voz rouca.
Os personagens femininos tampouco estão no lugar atribuído por Kerouac. Marylou, a menina que flutua entre Dean e Sal (ela se chamava LuAnne Henderson), não é mais um brinquedo sexual avoado. Havia muito tempo (desde que a viu atuar em “Na Natureza Selvagem”, de Sean Penn, em 2007) que Salles estava decidido a confiar o papel a Kristen Stewart, que ainda não era a Bella de “Crepúsculo”. O diretor acertou, a atriz faz de Marylou/LuAnne uma moça pronta a assumir qualquer risco, sem mostrar a inconsciência de seus parceiros masculinos. Na última ponta do triângulo, Garrett Hedlund exibe um incrível poder de sedução, que faz esquecer todos os ultrajes (ao pudor, à amizade e ao amor) que comete.
Ao longo da estrada, o trio faz encontros efémeros, com que o espectador gostaria de se deter mais tempo: Viggo Mortensen ressuscita William S. Burroughs, poeta heroinômano e assassino, que serviu de modelo para o personagem de Bull Lee, Steve Buscemi faz um caixeiro-viajante homossexual perturbador, o jovem Tom Sturridge representa Carlo Marx, segundo Allen Ginsberg, do tempo em que era tão bonito quanto Kerouac e Cassady…
Walter Salles está acostumado com filmes de viagem, mas nunca tinha se aventurado tão longe do seu Brasil natal. | RICHARD DUMAS/VU POUR “LE MONDE”
As tribulações transcontinentais de Sal Paradise e Dean Moriarty são a matriz de aventuras americanas vividas ou sonhadas por gerações de jovens que, um dia, quiseram partir longe. O princípio é sempre o mesmo: atravessar os Estados Unidos seguindo as fitas de asfalto, na esperança de descobrir o mundo, os outros, si mesmo.
A empreitada era arriscada. Não é coincidência se já se passou mais de meio século entre a publicação do romance e o início da construção do filme. Para fazê-lo, Walter Salles observou uma disciplina monacal. Precisou saber tudo do livro, que se tornou texto sagrado, do homem que o escreveu, das pessoas que serviram de modelo para os personagens, mobilizar os meios permitindo dar uma realidade material a paisagens desaparecidas. Depois, precisou apagar o conhecimento acumulado, a abundância de meios, para apenas mostrar a vida incerta, violenta e sensual de Sal Paradise e de seus amigos.
“Na Estrada” abre com uma viagem na traseira de uma picape. Andarilhos (hobos, em inglês americano), que acabaram de atravessar os anos da Depressão e da guerra dão lugar a um rapaz que não se parece com eles. Sal Paradise (Sam Riley) é o álter ego de Jack Kerouac, filho de operário originário do Québec nascido em 1922 que, de 1947 a 1950, atravessou várias vezes os Estados Unidos acompanhado de Neal Cassady (Dean Moriarty no romance).
O roteiro de José Rivera segue de relativamente perto o itinerário que o romance fixou para a posteridade. Mas também leva em consideração a realidade das viagens de Kerouac e Cassady. Da mesma maneira, a oscilação entre história e ficção aparece no elenco. Sam Riley, ator britânico (com sotaque americano impecável) não se parece em nada com Kerouac, enquanto Garrett Hedlund, que incarna Moriarty, lembra Neal Cassady.
De qualquer forma, “Na Estrada”, o livro, é também a história de sua própria criação, e a posição do artista – ator e observador, contemplativo, que se vê mergulhado de repente no coração da vida – está perfeitamente ocupada por Riley, com seu olhar sonhador e sua voz rouca.
Ao longo da estrada, o trio faz encontros efémeros, com que o espectador gostaria de se deter mais tempo: Viggo Mortensen ressuscita William S. Burroughs, poeta heroinômano e assassino, que serviu de modelo para o personagem de Bull Lee, Steve Buscemi faz um caixeiro-viajante homossexual perturbador, o jovem Tom Sturridge representa Carlo Marx, segundo Allen Ginsberg, do tempo em que era tão bonito quanto Kerouac e Cassady…
O elenco impecável, o roteiro de uma inteligência que frustra as armadilhas da adaptação, não são nada sem a mão do diretor. Walter Salles está acostumado com filmes de viagem: “Central do Brasil” (1998), “Diários de Motocicleta” (2003), mas nunca tinha se aventurado tão longe do seu Brasil natal, em estradas que são propriedades particulares dos cineastas americanos.
Com o diretor de fotografia e câmera Eric Gautier, Salles filma este imenso espaço com olhos novos, que eram também os de Kerouac e Cassady. As montanhas e os desertos reencontram sua virgindade de um tempo sem publicidade omnipresente, nem postos de gasolina parecidos com supermercados. Ainda se colhe o algodão com a mão, e o Sul vive sob o regime da segregação, que esses jovens brancos caçoam simplesmente porque gostam de jazz.
A liberdade é sua única regra e, já que alguns são escritores, a recusa das barreiras se tornará o dogma das gerações seguintes. Esta liberdade tem também um preço, que todo mundo paga: as amantes, as famílias, os amigos e finalmente os heróis. Walter Salles reabriu por inteiro a estrada das origens, do encanto solar da descoberta à amargura das separações.”
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