“Na Estrada”: a viagem mítica que formou a juventude.Walter Salles está acostumado com filmes de viagem, mas nunca tinha se aventurado tão longe do seu Brasil natal. | RICHARD DUMAS/VU POUR “LE MONDE”
As tribulações transcontinentais de Sal Paradise e Dean Moriarty são a matriz de aventuras americanas vividas ou sonhadas por gerações de jovens que, um dia, quiseram partir longe. O princípio é sempre o mesmo: atravessar os Estados Unidos seguindo as fitas de asfalto, na esperança de descobrir o mundo, os outros, si mesmo.
A empreitada era arriscada. Não é coincidência se já se passou mais de meio século entre a publicação do romance e o início da construção do filme. Para fazê-lo, Walter Salles observou uma disciplina monacal. Precisou saber tudo do livro, que se tornou texto sagrado, do homem que o escreveu, das pessoas que serviram de modelo para os personagens, mobilizar os meios permitindo dar uma realidade material a paisagens desaparecidas. Depois, precisou apagar o conhecimento acumulado, a abundância de meios, para apenas mostrar a vida incerta, violenta e sensual de Sal Paradise e de seus amigos.
“Na Estrada” abre com uma viagem na traseira de uma picape. Andarilhos (hobos, em inglês americano), que acabaram de atravessar os anos da Depressão e da guerra dão lugar a um rapaz que não se parece com eles. Sal Paradise (Sam Riley) é o álter ego de Jack Kerouac, filho de operário originário do Québec nascido em 1922 que, de 1947 a 1950, atravessou várias vezes os Estados Unidos acompanhado de Neal Cassady (Dean Moriarty no romance).
O roteiro de José Rivera segue de relativamente perto o itinerário que o romance fixou para a posteridade. Mas também leva em consideração a realidade das viagens de Kerouac e Cassady. Da mesma maneira, a oscilação entre história e ficção aparece no elenco. Sam Riley, ator britânico (com sotaque americano impecável) não se parece em nada com Kerouac, enquanto Garrett Hedlund, que incarna Moriarty, lembra Neal Cassady.
De qualquer forma, “Na Estrada”, o livro, é também a história de sua própria criação, e a posição do artista – ator e observador, contemplativo, que se vê mergulhado de repente no coração da vida – está perfeitamente ocupada por Riley, com seu olhar sonhador e sua voz rouca.
Ao longo da estrada, o trio faz encontros efémeros, com que o espectador gostaria de se deter mais tempo: Viggo Mortensen ressuscita William S. Burroughs, poeta heroinômano e assassino, que serviu de modelo para o personagem de Bull Lee, Steve Buscemi faz um caixeiro-viajante homossexual perturbador, o jovem Tom Sturridge representa Carlo Marx, segundo Allen Ginsberg, do tempo em que era tão bonito quanto Kerouac e Cassady…
O elenco impecável, o roteiro de uma inteligência que frustra as armadilhas da adaptação, não são nada sem a mão do diretor. Walter Salles está acostumado com filmes de viagem: “Central do Brasil” (1998), “Diários de Motocicleta” (2003), mas nunca tinha se aventurado tão longe do seu Brasil natal, em estradas que são propriedades particulares dos cineastas americanos.
Com o diretor de fotografia e câmera Eric Gautier, Salles filma este imenso espaço com olhos novos, que eram também os de Kerouac e Cassady. As montanhas e os desertos reencontram sua virgindade de um tempo sem publicidade omnipresente, nem postos de gasolina parecidos com supermercados. Ainda se colhe o algodão com a mão, e o Sul vive sob o regime da segregação, que esses jovens brancos caçoam simplesmente porque gostam de jazz.
A liberdade é sua única regra e, já que alguns são escritores, a recusa das barreiras se tornará o dogma das gerações seguintes. Esta liberdade tem também um preço, que todo mundo paga: as amantes, as famílias, os amigos e finalmente os heróis. Walter Salles reabriu por inteiro a estrada das origens, do encanto solar da descoberta à amargura das separações.”
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